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A Falta de Ânimo e o Futuro Incerto

José Mendes de Oliveira

20 de outubro de 2024

Eu tenho medo de abrir a porta
Que dá pro sertão da minha solidão
Apertar o botão: cidade morta
Placa torta indicando a contramão
Faca de ponta e meu punhal que corta
E o fantasma escondido no porão

 

(Pequeno Mapa do Tempo – Belchior)

 

 

De uma forma muito simplificada, pode-se dividir os eleitores da frente democrática, que constitui o atual governo brasileiro, em dois blocos: os que elegeram o Presidente Lula e seus coalizados na esperança de conter o avanço do bolsonarismo e aqueles - ainda esperançosos e crentes na existência de partidos progressistas -, de contar com uma alternativa desenvolvimentista e comprometida com a defesa intransigente da justiça social em uma sociedade historicamente desigual e cada vez mais excludente. Transcorridos quase dois anos de governo, parece que ambos os blocos acumulam muitas decepções ou frustrações, que, certamente, influenciarão as tendências políticas e o destino dos votos nas eleições futuras.

O combate ao bolsonarismo e seus mal feitos, particularmente no que se refere à tentativa de golpe de Estado em 2023, foi terceirizado para o STF, onde se destacam os enfrentamentos comandados pelo Ministro Alexandre de Moraes. Entretanto, a característica lentidão dos processos judiciais já deixa na dúvida se realmente haverá a punição de todos os envolvidos nas irregularidades, destacando-se os mandantes e financiadores mais influentes da arruaça. Por enquanto, enfrentam as barras da justiça apenas os cabeças ocas e os patriotários, que executaram as depredações dos prédios públicos.

No que diz respeito à adoção de ações progressistas e de recuperação da capacidade de investimento do Estado em políticas públicas e sociais, a ducha de água fria ficou por conta da agenda econômica essencialmente liberal, onde se destaca a adoção do arcabouço fiscal, proposto para substituir o chamado teto de gastos do governo neoliberal do ex-presidente Michel Temer. O discurso inicial do governo, voltado para o aumento de impostos pontuais sobre as classes mais ricas, tem perdido espaço com o direcionamento do foco para o corte de despesas ou gastos destinados a assegurar vida longa ao arcabouço.

A insistência da equipe econômica em manter essa versão do teto de gastos como um mantra sagrado inviabiliza, além dos gastos obrigatórios com educação e saúde (que também são vulneráveis!), qualquer outro investimento destinado às demandas sociais. Isso compromete, inclusive, o cumprimento de promessas de campanha, a exemplo da reforma do Imposto de Renda, que foi adiada pela terceira vez para o ano de 2025. Acuado pelo mercado financeiro e por outros agentes econômicos poderosos, além de garroteado pelo Congresso dominado pela extrema direita, o governo encontra-se preso na rede da reestruturação das despesas e, com isso, caminha gradativamente para a adoção de medidas elitistas que beneficiam os ricos e penalizam os mais vulneráveis.

O exemplo mais estridente desse tipo de ocorrência encontra-se nas ameaças de mudanças ou revisões na concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC), no seguro-desemprego e na vinculação do salário mínimo às correções das aposentadorias. O caso do BPC causa indignação por envolver indisfarçável injustiça. Esse benefício equivale a um salário mínimo – cerca de R$ 1.412,00 – destinado mensalmente ao idoso com idade igual ou superior a 65 anos e à pessoa com deficiência de qualquer idade, desde que membro de grupo familiar onde os integrantes não tenham renda superior a ¼ do salário mínimo (R$ 353,00).

O que assusta? Obviamente as discrepâncias advindas das históricas desigualdades e privilégios mantidos na sociedade brasileira, que parecem receber tímida atenção dos governantes, que se autointitulam progressistas ou de esquerda. Os gastos com o BPC atingiram a marca de R$ 7,9 bilhões em junho de 2023 e R$ 8,5 bilhões no mesmo mês no ano de 2024, ao passo que se registra, de acordo com dados do próprio Banco Central, um lucro líquido dos bancos da ordem de R$ 144,3 bilhões no ano de 2023, cerca de 5,2 bilhões a mais se comparados com os lucros auferidos em 2022. No mesmo ano de 2023, embaladas por planos de apoio, subsídios e incentivos, as exportações do agronegócio bateram recorde com vendas em torno de US$ 166,55 bilhões, que tiveram reflexo no PIB e foram efusivamente festejadas pelo governo. A propósito, salvo engano, a concessão de isenções e subsídios para determinados grupos econômicos e/ou contribuintes saltou de R$ 51 bilhões para R$ 647 bilhões entre 2022 e 2023. Tudo isso é no mínimo constrangedor em um país em que a renda é extremamente concentrada.

A posição subalterna aos interesses do mercado é reforçada pela política de juros elevados praticada pelo Banco Central, que traz benefícios apenas para os rentistas e outros agentes que se articulam em torno da especulação financeira. No ano de 2023 a taxa básica (Selic) foi da ordem de 11,75% ao ano e nada garante que a situação será diferente nos anos vindouros, ainda que ocorra a substituição da direção do BC por alguém menos comprometido com o bolsonarismo e com o monetarismo. Em verdade a questão não se resume apenas a tecnicidade de controle da moeda e dos preços (ou da tentativa intransigente de proteger o arcabouço fiscal), as opções são essencialmente de natureza política e parece faltar ao governo a força e o interesse necessários para ir além dos conchavos com as elites brasileiras.

No desequilíbrio das políticas que agradam os ricos (ainda que façam caretas para o governo) e as ações assistencialistas surradas para aqueles que recebem até dois salários mínimos (cotas, bolsas e subsídios para a habitação, entre outras), restam os setores medianos pressionados pela inacessibilidade ao crédito, devido a elevada taxa dos juros, e pela crescente precarização do trabalho. O medo da proletarização que é típico desses segmentos os encaminha em uma única direção: a adoção populista do discurso antissistema, que os partidos de direita e de extrema direita aprenderam a utilizar com maestria e que, agora, convertem em votos majoritários pelo país afora na ocupação de prefeituras e câmaras de vereadores. Isso não é nada alvissareiro, particularmente quando se pensa sobre o impacto que possa ter nas eleições de 2026, quando haverá a recomposição do parlamento brasileiro, talvez resultante com um perfil ainda mais reacionário e fisiológico que a sua composição atual.

Para os órfãos das antigas e saudosas esquerdas ou para aqueles que um dia sonharam com algum tipo de socialismo no Brasil não sobrou muito. Além do controverso identitarismo, para os que acreditam que a luta de classes não desapareceu e que a história não terminou, fica a sensação mais forte do luto e, no mínimo, do desânimo. Tudo indica que as elites retrógadas do país de Macunaíma estão vencendo mais uma vez e, desta vez, com pouca ou quase nenhuma oposição. O país envelhece e envelhecido parece apegar-se às soluções mais bizarras de um anacronismo político desconjuntado[1]. Algumas vezes se tem a impressão de que há o retorno às práticas da Velha República e, em outras, que boa parcela da sociedade jamais quis superar os rompantes autoritários que marcaram a história de sua frágil democracia. Na falta de boas ideias e de novas lideranças genuinamente progressistas - e sobretudo capazes de alimentar algum tipo de utopia com relação ao futuro do país -, tudo se transforma em um grande ponto de interrogação e com ele vem o medo, o terrível medo do futuro.

___________________

[1] O índice de envelhecimento da população é calculado pela razão entre o grupo de pessoas de 65 anos ou mais em relação ao segmento de 0 a 14 anos, e, quanto maior o valor do indicador, mais envelhecida será a população. Esse índice atingiu, de acordo com o IBGE, 55,2 no ano de 2022, ou seja, havia nesse ano 55,2 pessoas com 65 anos ou mais para cada 100 crianças de 0 a 14 anos. A sociedade está realmente envelhecendo e isso não parece incomodar os dirigentes públicos em todos os aspectos que envolvem a questão: aposentadoria, mobilidade, saúde, assistência, entre outros.

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