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A Lambança do Açaí

José Mendes de Oliveira

15 de maio de 2022

O que tem acontecido com as nominadas instituições republicanas brasileiras? A resposta é muito simples: elas não só estão passando por um processo de desintegração, como ponte ou travessia para a destruição da soberania nacional, mas também por uma evidente estratégia de cooptação que pretende levá-las à morte. Esse não é um fenômeno novo em um país que, em pleno século XXI, ainda vive um dilema cultural já apontado pela Antropologia brasileira: a dificuldade de separa a casa da rua. Em outras palavras, talvez mais impressionante, a dificuldade de lidar com a polis e com o oíkos. Essa dificuldade não se encontra expressa apenas no uso abusivo do espaço público, nas invasões dos puxadinhos urbanos e no descarado roubo de terras públicas por grileiros. Ela também está na administração pública e na política com a tradicional prática do patrimonialismo.

 

É essa mesma dificuldade cultural e histórica, que tem embasado o desmonte fascista do Estado brasileiro. A fórmula é muito simples: aqueles que se encontram em posições de mando (diferente de comando) ou de exercício do poder, passam a utilizar as instituições como se fossem um patrimônio particular ou pessoal. Ultimamente temos assistido de forma pacífica, de acordo com a tolerância macunaímica do brasileiro, inúmeras manifestações dessa natureza, mas a última é para ficar na história, desde que a gurizada robotizada de hoje reaprenda a valorizar a memória e, um dia, possa se lembra desse momento de trevas em que nos embrenhamos como o reverso de seres humanos e cidadãos.

 

Trata-se do exemplo escabroso de utilização da Advocacia Geral da União na defesa de uma pessoa, que passou a constar em laudas de inquéritos como a Wal do Açaí, título comercial de seu pequeno negócio voltado para a venda dessa guloseima amazonense. O problema é que essa pessoa também era ou foi ex-secretária parlamentar de um então desimportante deputado federal, ou seja, do atual Presidente da República. Ela esteve lotada no gabinete do deputado por 15 anos, a partir de 2018, mas jurou de pés juntos, em depoimento à Procuradoria, que nunca esteve em Brasília nem exerceu qualquer função relacionada ao cargo[1]. A dona do açaí era algo assim como o Gasparzinho ou como uma alma penada.

 

O resultado de todo o imbróglio é uma ação do Ministério Público, que envolve não só o atual mandatário do país, mas também a senhora do Açaí, em prática de improbidade administrativa, que requer naturalmente o necessário ressarcimento dos recursos devidos ao Estado. Em outras palavras, o erário foi descaradamente lesado ou indevidamente apropriado pela estranha dupla. Descoberta a lambança, a ação foi enviada para a 6ª Vara Federal do Distrito Federal. Até aí tudo bem, a vagarosa justiça brasileira parece estar cumprindo o seu papel e, pelo menos, deu uma resposta clara e concreta para a sociedade ao abrir um processo.

 

Então, o que causa surpresa de mentirinha, porque mais nada surpreende neste país, é que a Advocacia Geral da União resolveu assumir a defesa da dona do Açaí. Isso mesmo, a AGU disposta a defender uma pessoa, como qualquer outra, que transgrediu a lei. Para quem tiver a pachorra de ler, e não é necessária muita atenção, a Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993, verificará que a AGU foi criada para representar, em linhas gerais, a União judicial e extraordinariamente, cabendo a ela a consultoria e o assessoramento jurídico ao Poder Executivo. Com o apoio maior da paciência, o leitor passará por diversas atribuições arroladas no artigo 4º da Lei e, com certeza, não encontrará nada que possa justificar a defesa da dona do Açaí. O caroço no meio da tigela de Açaí é o então deputado, que o povo brasileiro em sua inteligência obscura transformou, logo depois, em presidente messiânico.

 

Ora, não precisamos ser juristas para perceber que a dona do Açaí era uma funcionária fantasma e que praticou uma ilegalidade conhecida por qualquer barnabé: servidor público não pode desempenhar outros cargos ou empregos, a não ser aqueles permitidos pela Constituição, muito menos possuir um estabelecimento comercial em funcionamento no horário do expediente. Em outras palavras, as falhas da dona do Açaí estão relacionadas com o exercício da função pública e não com situações que envolvam conflitos de interesse em que a AGU precise entrar em defesa da União. A rigor a AGU não possui, por força da Lei, a legitimidade para defender sequer o Presidente da República, caso ele se envolva em processos por crime de responsabilidade.

 

Portanto, a defesa da Wal do Açaí é mais uma das loucuras brasileiras, que motivou a reação da Associação Nacional dos Advogados da União (Anauni) junto à Procuradoria-Geral da União[2], que, provavelmente, não resultará em nada, porque o nada tem sido o destino deste achado lusitano, que resolvemos por algum motivo apelidar de Brasil. O nada da impunidade que ri de todas as bestas que somos, entre as quais me incluo como um dos crentes da CPI da Covid 19 e de tantos outros processos que sumiram com a força do pó de pirlipimpim - palavrinha difícil de se pronunciar e escrever - dos mágicos da malandragem. Percebo, cada vez mais, a urgência da Antropologia e de seus velhos estudos sobre o que somos, o que pensamos e o como fazemos as coisas nesta colônia tropicalista. Temos muito e quase tudo do Pedro Malasarte: astúcia, cinismo, falta de escrúpulos e uma resiliência incompreensível para o malfeito.

 

Porém, voltando à questão da destruição das instituições, é justamente quando agimos com ojeriza às regras, negamos o jogo pactuado, aceitamos a autoridade somente na autodefesa, desprezamos o uso comum do bem público e nos apropriamos ilegalmente do que deve ser coletivo como extensão do espaço doméstico – para mim um tiro certeiro da percepção de nossa velha Antropologia -, que paulatinamente minamos as bases institucionais do regime democrático. É assim que o brasileiro faz funcionar com eficiência a sua vocação fascista e coloca para pulsar a sua veia autoritária. Esse autoritarismo não está presente apenas no voto conservador ou extremista, mas nas simples relações do cotidiano, no feminicídio que ocorre nas favelas, no menosprezo à empregada doméstica negra ou parda, no espancamento de crianças indefesas, no assassinato premeditado de indígenas, no incineramento selvagem de desabrigados, na destruição dos recursos naturais e no agressivo racismo que se encontra em todos os lugares, agora não mais de forma velada, mas aberto ao público como prática aceita e legítima. O pelourinho foi posto na sala como ornamento e espetáculo pujante.

 

Eis o cenário que viabiliza o uso patrimonialista da própria justiça. É nesse contexto das inversões, da falta de civilismo e dos horrores normalizados, que se pode conceber uma AGU saindo na defesa de uma pessoa que lesou o erário, mas não só isso, ela o fez quando na condição de serviçal de alguém que detinha o poder. O que se encobre não é apenas a dona do Açaí e suas tigelas manchadas, mas também o seu padrinho. Essa é mais uma velha mania brasileira, que parecia ter desaparecido nos cafundós do sertão, mas não, o apadrinhamento foi além de sua lógica religiosa, de seu caipirismo sertanejo e se embrenhou na política como uma prática de compensação, assim como o franciscanismo das promessas e trocas espúrias para garantir votos e cargos. Por essa razão, sou instigado a insistir mais uma vez que o problema não se trata apenas de uma guerra contra as elites desta triste terra – seja aquela que se traduz nos herdeiros das oligarquias seja aquela à qual se atribui o sentido moderno das burguesias capitalistas -, porque os jeitos e trejeitos se esparramam pela sociedade como um véu que nos cobre e nos perpassa, a todos nós os filhos de Macunaíma. Não estou negando as culpas e o necessário julgamento da responsabilidade dos poderosos, mas chamando à razão a todos que realmente almejam a liberdade incorruptível e inalienável.

 

A passividade com a qual encaramos a posse privada da AGU e as diversas outras distorções que temos assistido, neste período de hegemonia do bolsonarismo no poder, é um sinal gigantesco de que algo se encontra muito errado com os brasileiros. Estamos banalizando a destruição da Nação, porque em verdade nunca valorizamos esse conceito. A história brasileira está repleta de decisões horizontalizadas a começar pela existência do próprio Estado. Não nos enxergamos em nossas instituições e, quando muito, aderimos às imagens dos planteis futebolísticos e, mais recentemente, uma parte da sociedade se agarra às insígnias das igrejas evangélicas. O ato mais simbólico da nossa aversão aos símbolos, que poderia ser a representação de uma unidade ainda que forjada, foi permitir ao movimento bolsonarista se apropriar da bandeira nacional como a sua flâmula. Hoje, entre as altas e baixas das curvas nos gráficos das inconfiáveis agências de pesquisa, trememos com a simples possibilidade de que tudo vá para o brejo e de que não tenhamos um pleito eleitoral. A turma vociferante que se apropriou da bandeira em mais um ato de patrimonialismo promete virar a mesa e decretar a eternidade no poder, ou seja, quebrar mais uma vez as regras como é habitual nesta terra.

 

No entanto, não devemos esperar por um golpe de Estado à moda antiga, com fardas e baionetas em punho, com marchas e continências. Ele já está acontecendo no estilo moderno das revoluções coloridas e das guerras hibridas. Nada disso acontece na calada da noite, mas à luz do dia, quando ordens judiciais são desrespeitadas com a anuência de autoridades públicas, quando leis são rasgadas, quando instituições públicas são utilizadas inconstitucionalmente e quando tribunais se dobram aos arranjos políticos em detrimento das próprias leis. Tudo isso nada mais é que a expressão de um golpe, que solapa - sem fazer esforços ou ranger os dentes -, as bases da democracia. O que ocorre com o caso da AGU é apenas mais um capítulo desta novela assustadora que tem sido a história brasileira. É tão absurda que somos tentados a utilizar a palavra estória invés de história. Porém, esse seria mais um autoengano, um jeitinho macunaímico, uma forma calhorda de iludir-se e fazer de conta que tudo vai muito bem, mas não vai não, não vai mesmo, porque o Brasil não é apenas um país imaginado como um lugar longínquo que se imagina nos contos de fadas. Ele é real e o seu destino amedronta tão mais que os contos sádicos ou de terror.

 

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[1] https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/03/23/wal-do-acai-diz-em-depoimento-que-nunca-esteve-em-brasilia-veja-trechos.ghtml

[2] https://www.jota.info/justica/associacao-diz-que-oficiara-procuradoria-geral-da-uniao-sobre-defesa-para-wal-do-acai-13052022

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