Acuação e Triunfalismo
José Mendes de Oliveira
30 de abril de 2024
O futuro da democracia brasileira encontra-se na dependência do sucesso do atual governo, que precisa urgentemente superar duas posturas que o colocam em risco permanente: a acuação e o triunfalismo. A acuação é expressa na opção indisfarçável do governo, e de suas lideranças, pelo institucionalismo burocrático ou articulação dentro das fronteiras dos acordos políticos tradicionais, geralmente desequilibrados, como garantia de manutenção da governabilidade (o recurso a talvez anacrônica e exaurida alternativa da coalizão). Há implicações evidentes em relação a essa postura, destacando-se o menosprezo à mobilização popular, a terceirização do confronto político com o nazifascismo tupiniquim para o Poder Judiciário e a reiterada genuflexão às imposições do Poder Legislativo dominado pela extrema direita. O triunfalismo pode ser observado no excesso de otimismo e na superlativa valorização de ações conjunturais, particularmente na área econômica, que deveriam ser consideradas de forma mais comedida. Exemplos dessa excessiva confiança podem ser encontrados no entusiasmo com o crescimento de 2,9% do PIB em 2023 (a variação positiva do setor industrial foi de apenas 0,2% no mesmo ano), ainda que engrossado pelos ganhos do agronegócio antiprogressista (e em grande parte bolsonarista), e na sugestão de que a equipe econômica, ou mais precisamente o ministro da pasta, seria merecedora do Prêmio Nobel em função dos programas Desenrola e Eco Invest Brasil[1].
Além dos exageros em torno desses programas econômicos, que não são compreendidos pelo grosso da população mais preocupado com as contas e gastos nos supermercados, há também visíveis articulações e tomadas de decisões que colocam em risco o apoio ao governo dentro do seu próprio território, a exemplo do tratamento seletivo das reinvindicações salariais dos servidores públicos federais. Nesse caso, repete-se o equívoco de favorecer categorias corporativas, que têm poder de influência e pressão mais significativo, em detrimento de categorias consideradas menos importantes (ainda que essenciais) e de grande parte dos servidores inativos. No meio desse imbróglio, pode-se localizar a insatisfação dos servidores das instituições de ensino federais, que desencadearam movimentos grevistas e foram criticados, contraditoriamente, por muitos autodeclarados progressistas ou adeptos de partidos de esquerda. O que chama a atenção, até mais que o pouco caso com uma pauta salarial justa, é a falta de uma política mais consistente para a área, quando mais se necessita no país de um setor educacional valorizado e proativo para o enfrentamento das correntes retrógadas e negacionistas, que adquiriram proeminência com a difusão e adesão ao bolsonarismo, particularmente nos setores medianos da sociedade.
Na ausência da percepção da existência de políticas realmente comprometidas com mudanças estruturais e, em grande parcela, devido à terceirização do embate com a extrema direita para o Judiciário (o STF parece ocupar cada vez mais o papel de um poder moderador), tem crescido a sensação de que mais uma vez nada de novo está acontecendo no país, ainda que se possa registrar a melhoria dos indicadores de emprego em alguns setores, bem como o resgate de políticas sociais relevantes para os segmentos mais pobres, a exemplo dos programas habitacionais e de transferência de renda. No caso específico do combate aos arautos do golpismo, mais particularmente no que se refere ao julgamento e punição dos envolvidos nos eventos que antecederam e que culminaram com a tentativa de golpe no dia 08 de janeiro de 2023, parece aumentar a sensação de que os tubarões do golpe não serão responsabilizados e punidos, o que certamente é reforçado pelo compasso dos procedimentos processuais e decisórios do sistema judicial. Como uma sombra funesta, o desânimo vai tomando o lugar do pouco que resta da esperança de quem ainda torce pela salvação da democracia em terras brasileiras. Enquanto o governo atual opta por não se envolver em uma disputa política mais contundente, a extrema direita toma as ruas e mobiliza, a exemplo do que faziam outrora as saudosas esquerdas. Com isso fica cada vez mais evidente, que os extremistas não são os imaginados debiloides sem estratégias e métodos, mas gente articulada internamente e externamente, que busca ampliar as bases de apoio e constituir futuras lideranças. Isso é com certeza assustador, sobretudo quando considerado o contexto de expansão do radicalismo de direita no cenário internacional.
Para complicar um pouquinho mais a situação, tudo indica que a mídia hegemônica tem tornado cada vez mais evidente a sua histórica posição de defesa dos interesses das elites brasileiras, mesmo que isso signifique afrontar a própria democracia. A postura não é nova e a alternativa do momento é buscar entre as promessas do bolsonarismo um nome viável para o pleito presidencial em 2026. Parece que essa é a posição, nada sútil, apresentada pelo O Globo no dia 28 de maio de 2024, em sua série de perfis mensais denominada Persona, que situa o governador de São Paulo, assumidamente um bolsonarista raiz e militante, como uma alternativa equilibrada para o referido pleito. Embora o bolsonarismo constitua uma das expressões mais raivosas da extrema direita, o governador é apresentado como o nome mais relevante da direita (qual seria?!), além de ser mimoseado com o perfil de um político equilibrado, capaz de transitar de forma competente entre o fundamentalismo do bolsonarismo (vale dizer o radicalismo da extrema direita!) e a ordem institucional[2]. É constrangedor que um dos veículos mais atacados pelos bolsonaristas, e indisfarçavelmente prestigiado pelo atual governo[3], levante a bandeira de seus hostilizadores. Porém o fato não surpreende. Ele é a expressão do jeitinho brasileiro de fazer política, defender interesses e manter o status quo.
Em meio a tudo isso, os que têm apreço pela democracia encontram-se espantados, de olhos arregalados e apreensivos, sem entender muito bem para que lado se move a biruta do governo brasileiro. Entre acordos, cargos e nomeações cacifadas pelos dirigentes do parlamento, inclusive relacionadas ao Poder Judiciário[4], o futuro se torna misterioso e amedrontador. Paira no ar uma grande interrogação e o pavor dos retrocessos. Esse temor é alimentado certamente por um cenário de incertezas que abarca grande parte do mundo, destacadamente países do norte global, que já há um bom tempo tem alimentado o populismo da extrema direita de forma desbragada[5]. A confirmação dessa tendência nos próximos anos, pode resultar na forte disseminação de regimes autoritários ou extremistas na América Latina e, nesse caso, não se encontra totalmente descartado o retorno do bolsonarismo ao poder no Brasil, ainda que envernizado com aparente civilidade, contorcendo-se para demonstrar uma postura política menos beligerante e sob as bençãos da imprensa hegemônica agarrada aos fundamentos do neoliberalismo. De qualquer forma, é difícil acreditar que a maquiagem seja capaz de evitar a costumeira ira, o fascismo declarado e oportunamente o revanchismo truculento.
Aspecto não menos preocupante, é a crescente dissonância cognitiva que abrange frações da sociedade brasileira, cuja fonte principal de informação são as mídias sociais, onde pululam inúmeras mentiras elaboradas por falsos jornalistas e influenciadores. No compasso, o descrédito da ciência e o menosprezo pela educação abrem espaço para as crendices fundamentalistas e teorias conspiratórias, que, além de socorrem emocionalmente os que sofrem inúmeras carências, servem de esteio explicativo ou de justificativa ideológica para a compreensão do mundo, ainda que falsa ou distorcida. A junção de política e religião pode ser mais um ingrediente catastrófico para a definição de um futuro ainda mais obscurantista, afundado em ignorância e no retrocesso no que se refere aos valores que fundamentam a civilização moderna. No que vai desembocar tudo isso, a gente não sabe, mas causa perplexidade a normalidade para a qual caminha os malfeitos dentro do país. Na pior das hipóteses, caso se estabeleça uma anistia geral e irrestrita para extremistas e golpistas, a descrença nas instituições brasileiras, que já é grande, cai definitivamente no mais profundo precipício e, nesse caso, não se salva sequer o republicanismo pueril do atual governo. Instaurar-se-á no país o vale tudo da extrema direita para os seus adeptos e a via-crúcis para os que até agora se colocaram ao lado da democracia e da defesa do estado de direito. Pode-se admitir, sem exageros, que o resultado será a constrangedora vitória da barbárie.
A forma como abordamos essas questões pode soar catastrofista, mas não é delirante. Todos sabemos que, até certo ponto, o atual governo encontra-se encurralado no dilema da governabilidade e na constante ameaça do impedimento, mas é essencial que se articule de forma mais enérgica e com a sensibilidade necessária para atrair a atenção, o apreço e o apoio da maior parte da população brasileira. Tudo leva a crer que o governo tem depositado as suas fichas, para tanto, no sucesso econômico. Porém, como isso pode ser possível, quando a agenda da austeridade fiscal, revestida de todos os cacoetes neoliberais, é sobreposta ao compromisso com o desenvolvimento e com a responsabilidade social? A obsessão pelo déficit zero não coaduna com o discurso de um governo que se diz progressista e torna praticamente impossível justificar como se constrange o investimento estratégico, que é urgente para a promoção de políticas públicas e sociais, mas se mantém o pagamento elevado de juros da dívida pública. Torna-se obvio que, em meio à polarização política, a questão econômica é transformada em um instrumento de pressão e ameaças, ou seja, algo a ser explorado ao máximo no jogo de poder imposto pelos interesses da extrema direita encastelada no parlamento. O cidadão comum assiste sem entender com precisão os motivos dos sucessivos confrontos com os dirigentes do Senado e da Câmara, mas desconfia que no final da festa, para a qual não foi convidado, ele será instado a pagar a conta. Nesse sentido, é bastante ilustrativa a reação do Ministro da Fazenda no contexto do mais recente embate com o Senado sobre a desoneração da folha de pagamentos, quando afirma que a não suspensão da medida traz o risco de uma nova reforma da Previdência[6]. O cidadão comum pode não saber muito sobre economia ou sobre os cabos de guerra da política, mas, com certeza, sabe o que significa esse tipo de reforma. A reação é muito natural: aumenta o temor, quando não a ojeriza, em relação ao próprio governo.
Em suma, é urgente a mudança de rumos para a superação da acuação e do triunfalismo em prol de uma postura proativa, capaz de viabilizar a reaproximação com as bases sociais no suporte às ações políticas, a retomada de investimentos estratégicos para a promoção do desenvolvimento econômico e social, além do reforço do protagonismo político em diminuição à dependência da ação moderadora do Poder Judiciário. Também, não parece ser razoável tratar com desdém os avanços da extrema direita, ainda que possam assemelhar-se a performances histriônicas e circenses. Há lógica no que pode parecer loucura. Os extremistas estão livres e soltos, desfilando pelas capitais e cidades do interior do Brasil, bem como se articulando com lideranças e simpatizantes no exterior. Hoje há um projeto evidente de se fazer a maioria dos prefeitos nas eleições municipais de 2024, de eleger a maior bancada no Senado em 2026, viabilizando a força necessária para o impedimento de ministros no STF, além do propósito explícito de retornar ao Palácio do Planalto. Agora os extremistas beligerantes podem contar com o apoio dos órgãos da mídia hegemônica, que até há pouco tempo eram hostilizados, mas que não se sentem ofendidos e assumem com gozo a incumbência de transformar a truculência em produto palatável em nome das elites autocráticas e retrógadas deste melancólico país. Resta apenas uma certeza: se o governo não acertar o passo e começar a levar todas essas ocorrências a sério (no que se refere principalmente ao embate político), dificilmente haverá um desvio que nos livre do abismo, ou seja, sucumbiremos todos sem choro nem vela.
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[1] O Eco Invest Brasil é, de acordo com definição do Governo brasileiro, uma iniciativa desenvolvida para auxiliar na estabilidade e previsibilidade ao quadro macroeconômico do País, além de criar condições estruturais para atração de investimentos privados externos necessários à transformação ecológica do país, buscando adotar conceitos inovadores e boas práticas financeiras, com inclusão de critérios climáticos e ambientais, sociais e de governança.
[2] A manchete da matéria é a seguinte: “Tarcísio de Freitas: Um Bolsonarista Equilibrista entre Radicais e as Instituições”. Entre os vários trechos da matéria, que surpreendem, destaca-se o seguinte: “Aos 48 anos, o engenheiro carioca Tarcísio Gomes de Freitas é hoje o mais relevante nome da direita brasileira com mandato, tendo que se equilibrar dia após dia entre dois papeis: o de maior representante do bolsonarismo fundamentalista, que, com seu principal líder inelegível até 2030, ficou sem ter alguém com a caneta em mãos para atacar vacinas, urnas eletrônicas e o STF; e a institucionalidade do cargo que alcançou em 2022, após conquistar 13,4 milhões de votos e vencer por 55,27% a 44,73% o atual ministro da Fazenda, Fernando Haddad”. Conferir em: https://infograficos.oglobo.globo.com/politica/tem-que-ler-persona-tarcisio-freitas.html.
[3] De acordo com dados levantados pela Revista Veja no banco de dados da Secom/PR, no atual governo, o faturamento da Rede Globo com verbas da comunicação oficial do governo superou a soma de 21 grupos de mídia listados, que totalizou 39,7 milhões de reais entre janeiro e outubro de 2023. Nesse período, a Rede, que integra o mesmo grupo ao qual pertence O Globo, esteve no primeiro lugar do ranking e faturou, de acordo com o referido periódico, R$ 66.179.452. Conferir: https://veja.abril.com.br/coluna/maquiavel/com-lula-globo-supera-record-e-lidera-em-verbas-publicitarias-do-governo.
[4] O exemplo mais recente diz respeito à nomeação de um novo ministro para vaga no TST, cuja lista tríplice inclui nomes patrocinados pelos dirigentes do Senado e da Câmara. Conferir: https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/tst-lula-pode-escolher-entre-aliado-de-lira-e-apadrinhado-de-pacheco.
[5] Além dos EUA, é importante destacar essa tendência no continente europeu, destacando-se os casos da Espanha, Itália, Suécia, Hungria, Polônia, Israel e França, principalmente a partir da primeira metade dos anos 2000.
[6] Conferir em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/geral/audio/2024-04/haddad-desoneracao-da-folha-traz-risco-de-nova-reforma-da-previdencia.