Neoliberalismo e Favelização
José Mendes de Oliveira
09 de novembro de 2024
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Os dados reunidos pelo IBGE no Censo 2022 são reveladores e ajudam a conjecturar sobre o destino de um país de capitalismo selvagem como o brasileiro[1]. Não se trata de ser ou não pessimista, mas de encarar a realidade e prever um futuro pouco alvissareiro para uma sociedade que, historicamente, não consegue superar seus piores traços estruturais, a exemplo do reacionarismo de suas elites autocráticas, da brutal concentração de renda, de seu racismo atualmente pouco dissimulado e da avassaladora injustiça social, que afeta particularmente a sua população de pretos e pardos, ou seja, aqueles que tiveram seus antepassados presos às correntes da escravidão.
O que salta aos olhos não é novidade, mas permanece como algo extremamente constrangedor: o país segue a trilha da favelização com a marca de 16,4 milhões de pessoas, a maioria justamente constituída de pardos (56,8%) e pretos (16,1%), vivendo em 12.348 Favelas e Comunidades Urbanas. Em 2010, de acordo com o IBGE, foram identificadas 6.329 Favelas e Comunidades Urbanas, onde residiam 11.425.644 pessoas, algo equivalente a 6,0% da população do país naquele ano. Em 2022 esse percentual saltou para 8,1% da população brasileira, ocupando espaços em 656 cidades e com concentração populacional mais significativa nas Regiões Norte, Sudeste, Nordeste e Centro-Oeste[2].
As unidades da federação com as maiores proporções de sua população residindo em Favelas e Comunidades Urbanas não causam surpresa. Elas se concentram na Região Norte - Amazonas (34,7%), Amapá (24,4%) e Pará (18,8%) -, cujas precariedades são há muito tempo noticiadas e conhecidas. Talvez seja um pouco mais vexatória a constatação de que, no universo das Favelas e Comunidades Urbanas mais populosas, o segundo lugar é ocupado por uma comunidade localizada a pouco mais de 30 km do centro de Brasília ou cerca de 60 km do Palácio do Planalto. Trata-se do Sol Nascente com um total de 70.908 habitantes e 21.889 domicílios, números superados apenas pela Rocinha no Rio de Janeiro, que reúne 72.021 moradores e 30.371 domicílios[3].
Entretanto, dois aspectos, apreendidos dos dados levantados pelo IBGE, atraem ainda mais a atenção: o primeiro diz respeito a idade média da população nas Favelas e Comunidades Urbanas, onde predomina uma população mais jovem, o que certamente não causa estranhamento em quem está acostumado a analisar a relação entre pobreza e taxa de natalidade. De acordo com o IBGE, em 2022, a idade mediana da população do país era 35 anos, ao passo que nas Favelas e Comunidades Urbanas, 30 anos. O índice de envelhecimento nas Favelas e Comunidades era 45, ou seja, existiam 45 idosos (60 anos ou mais) para cada 100 crianças de 0 a 14 anos, enquanto na população do país a relação era de 80 idosos para cada 100 crianças.
O segundo aspecto nos parece o mais importante, porque pode auxiliar de forma muito significativa a entender a mais recente opção política dos eleitores no pleito municipal, e se refere aos estabelecimentos nas Favelas e Comunidades Urbanas. O Censo de 2022 evidencia que, entre os 958.251 estabelecimentos identificados nas Favelas e Comunidades Urbanas, 7.896 eram de ensino, 2.792 eram de saúde e 50.934 eram estabelecimentos religiosos. Portanto, proporcionalmente, nessas localidades havia 18,2 estabelecimentos religiosos para cada estabelecimento de saúde e 6,5 estabelecimentos religiosos para cada estabelecimento de ensino.
Embora os dados do IBGE não permitam fazer ilações sobre a natureza dos estabelecimentos religiosos, pode-se supor, com base em dados colhidos pelo IPEA em 2021, que a maior parte seja constituída de templos evangélicos pentecostais ou neopentecostais. Em 2021, o IPEA verificou que, entre os 124.529 estabelecimentos religiosos existentes no país, 11% eram católicos, 19% evangélicos tradicionais e 52% evangélicos pentecostais ou neopentecostais. Entre os evangélicos pentecostais, a Assembleia de Deus possuía, naquele ano, o maior número de estabelecimentos (14% do total)[4]. Por que esse dado é relevante? Não se trata apenas de uma questão religiosa ou puramente ideológica, mas de uma evidência mais preocupante: a ausência do Estado e consequentemente de políticas públicas efetivas direcionadas à população, que encontra nas igrejas o apoio que lhe é negado pelo poder público.
Frente à debilidade dos sistemas de ensino e saúde, aliada ao empobrecimento advindo da desocupação e da crescente precarização do trabalho[5], resta pouco à população a não ser recorrer a Deus, que encontra vocalização na retumbância dos pastores e alento na esperança apregoada pela teologia da prosperidade. Tudo isso se encaixa adequadamente com os interesses de elites excludentes e de uma gestão pública que se molda, a cada dia, pelo viés do neoliberalismo. Ao contrário do que pode supor uma sociologia pequeno-burguesa, não se trata de um pobre de direita que destina seu voto para partidos e candidatos conservadores ou reacionários por orientação ideológica, mas de pessoas precarizadas, postas no limite de um apartheid social, que precisam resolver seus problemas e alcançar um padrão de vida digno (alimentar-se, educar-se e medicar-se quando adoecidas).
A busca por soluções não passa incólume ao canto das sereias ou às manipulações políticas tradicionais, que ainda possuem raízes profundas no modus operandi da política brasileira. Trocar votos por favores ou vendê-los pelo melhor preço não é, infelizmente, comportamentos do passado. Esses comportamentos tendem a se acentuar quando há níveis elevados de desinformação, barriga vazia e debilidades físicas que atormentam[6]. Em um país que registrava, em 2023, o percentual de 46% da população com mais de 25 anos sem a educação básica completa, bem como o abandono da escola por 45% da população de 15 a 29 anos em função da necessidade de uma ocupação ou trabalho[7], a falta de escolas e a falta de assistência à saúde[8], aliadas à falta de trabalho, à precariedade da renda e ao empobrecimento, tendem a agravar cada vez mais a qualidade do voto, além obviamente de alimentar o domínio do misticismo e da religião como alternativas para explicar as contradições do mundo e apaziguar a tormenta dos espíritos[9].
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[2] De acordo com o levantamento do IBGE, entre as vinte Favelas e Comunidades Urbanas mais populosas do País, oito estavam na Região Norte (7 delas em Manaus), sete no Sudeste, quatro no Nordeste e uma no Centro-Oeste (Sol Nascente no Distrito Federal).
[3] A distribuição, de acordo com o maior quantitativo populacional, é a seguinte: Rocinha, no Rio de Janeiro (RJ), com 72.021 habitantes; Sol Nascente, em Brasília (DF), com 70.908; Paraisópolis, em São Paulo (SP), com 58.527 e Cidade de Deus/Alfredo Nascimento, em Manaus (AM), com 55.821.
[4] IPEA/DISET. Nota Técnica nº 123, novembro de 2023.
[5] Ainda que o IBGE tenha registrado queda de 6,9% na taxa de desocupação no segundo trimestre de 2024 em pelo menos 15 Unidades Federativas, a taxa de informalidade no Brasil permanece relativamente elevada com o percentual de 38,6% da população ocupada. As maiores taxas de informalidade foram verificadas no Pará (55,9%), Maranhão (55,7%) e Piauí (54,6%) e as menores, em Santa Catarina (27,1%), Distrito Federal (29,8%) e São Paulo (31,2%). De acordo com o IBGE, a taxa de informalidade da população ocupada é calculada considerando-se os empregados no setor privado e os empregados domésticos sem carteira de trabalho assinada, além dos empregadores e trabalhadores por conta própria sem registro no CNPJ e dos trabalhadores familiares auxiliares. Conferir: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/41018-desocupacao-recua-em-15-unidades-da-federacao-no-segundo-trimestre-de-2024.
[6] É relevante destacar que embora o SUS seja ainda a melhor alternativa disponível para a maioria dos brasileiros, o sistema não consegue atender a todas as necessidades, particularmente quando envolvem doenças crônicas ou emergências que requerem intervenções cirúrgicas. A complementação com a assistência dos planos de saúde privados, geralmente buscada pelos setores medianos da sociedade, tem se inviabilizado de forma crescente, devido particularmente aos valores escorchantes das mensalidades e a regulação precária dos serviços. Em relação às escolas pesa um outro aspecto muito importante: além de constituir um espaço de ensino e formação, a escola propiciou, em 202,2 alimentação para 40,2 milhões de crianças, de acordo com dados da pesquisa O Estado da Alimentação Escola na América Latina e Caribe, e, em muitos casos, particularmente nas periferias, essa é a única alimentação disponível para crianças pobres (conferir: WFP/BID – Programa Mundial de Alimentos). Em outras palavras, o desprezo pela educação não afeta somente a questão do ensino propriamente dita, mas também a questão alimentar, o que exige por si só mais cuidado em se tratando da disposição de muitos dirigentes em cortar investimentos no setor ou simplesmente privatizá-lo. Em outras palavras: a política de cabeças e estômagos vazios se destina ao desastre da cegueira e alienação, o que certamente pode agradar e ser útil para elites autocráticas, vorazes, anticívicas e depredatórias.
[7] De acordo com dados da PNAD de 2023.
[8] Obviamente que não se trata apenas de uma questão de quantidade, mas, sobretudo, de qualidade e efetividade. Não adianta construir escolas, postos de saúde e hospitais sem a devida prestação dos serviços, o que demanda no mínimo equipamentos e profissionais qualificados, além de remunerados adequadamente.
[9] Ademais, se o povo se submete à servidão voluntária, de acordo com a definição de Étienne de La Boétie, o faz não só sob a influência tradicional da política do pão e circo, mas também do caráter religioso que, não raras as vezes, se revestem os tiranos na condição de entidades messiânicas ou redentoras. Nesse sentido, a política se entrosa muito bem com a religião e, nesse entrosamento, torna-se fácil estabelecer a estrutura rasteira do discurso maniqueísta e mistificador, que serve ao propósito de criar inimigos, opor correntes ideológicas como campos de guerra e abrir espaço para polarizações no estilo da máxima paulina em Romanos 8:31: se Deus é por nós, quem será contra nós? No Brasil, as barreiras entre as igrejas, particularmente as pentecostais e neopentecostais, e a ação política que deveria ser laica tem se tornado exageradamente tênue e auxiliado de forma muito evidente a ascensão dos movimentos de direita e de extrema direita.