O Passado e o Presente Tupiniquim
José Mendes de Oliveira
13 de novembro de 2022
Alguém pode se perguntar, com inevitável perplexidade, como é possível a difusão de ideias e comportamentos neofascista ou neonazistas em um país miscigenado como o Brasil, ainda que parte considerável dessas manifestações se concentre no sudeste e sul do país, regiões que acolheram muitos migrantes europeus, adeptos do arianismo ou do nacionalismo patológico, desejosos de estabelecer antigas aldeias europeias na terra brasilis. A explicação requer, necessariamente, que se observe o fenômeno por um ângulo diferente do que foi e tem sido o avanço de correntes extremistas na Europa. Observando-se com atenção as diversas ocorrências brasileiras, particularmente as mais recentes entre estudantes ricos ou de estratos medianos mais favorecidos em colégios e universidades privadas[1], o que se evidencia em verdade é o velho e já conhecido preconceito de classe. Por debaixo das manifestações neofascistas ou neonazistas tupiniquins encontram-se incólumes os resíduos de uma formação social de passado escravocrata e excludente. A direita e a extrema direita brasileiras se explicitam muito mais pela história brasileira, em que elites se apropriam de múltiplos privilégios e estratos medianos se posicionam como segmentos auxiliares, e muito pouco ou quase nada pela adoção das ideologias que marcaram a Alemanha e a Itália entre as décadas de 30 e 40 do século XX. Para entender o Brasil de hoje, basta entender o Brasil de ontem, que pouco se alterou no que se refere à lógica excludente de sua estrutura econômica e social.
Para voltar ao ontem é recomendável a leitura de dois trabalhos primorosos da historiografia brasileira – Da Senzala à Colônia e Da Monarquia à República – ambos escritos por Emília Viotti da Costa[2]. Esses dois livros trazem informações abundantes para qualquer curioso, que pretenda entender como as oligarquias brasileiras conseguiram manter um sistema escravagista até o século XIX e aprenderam a combinar, ainda que de forma canhestra, a postura conservadora com o discurso liberal, além de conhecer as engrenagens que permitiram, por intermédio do sistema de clientela, a cooptação e integração dos segmentos médios adensados, principalmente, a partir do período Imperial. A propósito, através do sistema de clientela e patronagem, as elites consolidaram a hegemonia sobre os demais grupos sociais e mantiveram a estabilidade na defesa de seus interesses econômicos e políticos. É óbvio que o país se modernizou e passou por diversas reformas desde o seu período colonial, sempre resistentes e antepostas a qualquer possibilidade de um evento de caráter revolucionário, mas a lógica de sua estrutura excludente e de suas relações promíscuas entre o público e o privado, em se tratando da defesa dos interesses dos poderosos, se manteve incólume no passar de décadas. A propósito, a concentração da riqueza em grupos específicos, inclusive em grupos familiares, sempre foi marcante no caso brasileiro. Por essa razão não é incomum encontrar registros na história de famílias que se perpetuam no cenário econômico, político e social desde os primórdios da história brasileira[3].
A história política pós-republicana envolve, certamente, a participação de outros segmentos sociais, principalmente com a inclusão de novos atores urbanos, mas a base do jogo político permanece o mesmo, particularmente no que se refere à formação do parlamento e ao ingresso de servidores ou funcionários dos segmentos médios em cargos e funções dos poderes públicos. O falso discurso da meritocracia, bem azeitado ao liberalismo de meia pataca tupiniquim, sempre esteve presente na história brasileira, desde a época dos bacharéis republicanos no velho império. Liberalismo caolho que serviu para sustentar a liberdade dos poderosos, mas não a abominação da escravatura, da miséria dos destituídos ou para a defesa do direito de participação política de todos os segmentos sociais[4]. Também é dessa época o pavor ao comunismo ou a qualquer tipo de ideia política que envolvesse a remota possibilidade de reforma agrária e regulamentação de procedimentos na esfera pública. As leis se destinam como sempre à ornamentação de uma civilidade inexistente e à condição de dispositivos a serem aplicados em prol da defesa de interesses privados e punição dos inimigos. Na história brasileira, ainda que legendas políticas mais progressistas consigam alcançar o poder, como foi o exemplo mais recente do Partido dos Trabalhadores na década de 2000, sujeitam-se obrigatoriamente, em função da governabilidade e da viabilidade da gestão, à realização de coalizões e acordos em que os interesses das elites são atendidos parcialmente ou totalmente. O jeitinho brasileiro não é só um cacoete de natureza moral, mas um padrão relacional, bastante funcional no que se refere à manutenção do status quo ou às artimanhas que garantem os privilégios nas esferas da economia e também da política.
O que podemos assistir nesta entrada do século XXI com a expansão desacanhada da extrema direita, como se fosse um fenômeno dos tempos e de natureza ubíqua, em solo tupiniquim não é necessariamente o tradicional eco da influência estrangeira, mas a genuína reinterpretação dos vícios da terra. Em outras palavras, o bolsonarismo é a expressão legítima das contradições de classes no país em que todos os vícios, inclusive aqueles que tensionam a relação público-privado, podem ser encontrados na aventura de uma família no poder assegurada pelo poder dos mais ricos, pela ameaça de grupos milicianos e pela já conhecida intromissão militar na esfera da política. É o velho Brasil que apenas se adequa às novas tecnologias de comunicação, aos jeitos e trejeitos das mídias globais e à dinâmica de um país cada vez mais alienado no que se refere ao acesso da população a padrões educacionais, que permita uma visão de mundo minimamente civilizada. Os ricos conservam-se divorciados de um projeto nacional como sempre estiveram, os estratos medianos dos velhos bacharéis permanecem tão alienados como sempre, e hoje talvez mais propícios a abraçar bandeiras de um fascismo mais radical do que aquele expresso pelos integralistas da década de 1930, esses sim muito influenciados pelo avança do autoritarismo na Europa. O resto é o resto da população majoritariamente negra e parda lançada na pobreza como a herança maldita do Brasil da escravatura e dos grandes latifúndios, que na maioria das situações só conhece a presença do Estado por intermédio da truculência policial.
O Brasil exportador de produtos agrícolas não se alterou muito de sua matriz originária. É como um corpo decrépito maquiado para se tornar mais vistoso: no lugar do cavalo entra a motocicleta, no lugar da carroça o caminhão e no lugar do arado de tração animal o trator, mas as mentalidades e as práticas relacionais permanecem intactas. As elites econômicas manipulam os agentes políticos, como sempre manipularam, como peças de um lego que garantem a forma desejada de funcionamentos das instituições de acordo com seus interesses. Não é por outra razão que a democracia tupiniquim sofre, a todo momento, a ameaça de desmoronar-se ou de se decompor para se recompor em seguida de acordo com os mesmos interesses. O sistema não é imune às pressões internas e externas, mas tem a capacidade de manter as rédeas do jogo, inclusive cooptando segmentos dentro da própria sociedade com a prática insistente de um falso liberalismo em que a liberdade, a posse da propriedade, a meritocracia, a possibilidade do enriquecimento pela labuta ou o empreendedorismo funcionam como mantras para um convencimento que esbarra a lógica de um discurso religioso. A propósito, é nesse contexto que a pregação neopentecostal da teologia da prosperidade (em contraposição à teologia da libertação), abençoada pelo sopro divino, se encaixa de forma muito eficiente. As contradições de classes são deslocadas para dentro dos indivíduos na forma de atributos ou capacidades meramente pessoais, cuja superação de limites depende exclusivamente da força de vontade, do mérito e da gana para vencer em um sistema que promete, ainda que de forma mentirosa, todas as oportunidades e até a selvageria da ausência de regras, do jogo que admite a barbárie como possibilidade da riqueza e, portanto, nada mais adequado que o discurso anticivilizatório e as práticas violentas de um fenômeno como o bolsonarismo tupiniquim. Esse é, portanto, o cenário adequado para a ascensão ao poder de uma família esquizofrênica, aventureira e sem limites morais, a exemplo das máfias e das milícias, para as quais não há limites entre o público e o privado. O submundo pode ser muito funcional para as elites tupiniquins, desde que ele garanta, no exercício na ocupação dos poderes constituídos e do exercício da força, as condições ótimas para a liberdade de exploração do capital, ou seja, menos regulamentação e mais acumulação.
O país nasceu de um projeto anticivilizatório e excludente e, por essa razão, as práticas de uma sociedade moderna sempre foram adotadas como monstrengos ou como uma realidade falseada. Expressão dessas distorções pode ser encontrada, historicamente, na forma como se estrutura e funciona o fisco em território tupiniquim. Nesse país repleto de contradições, a cobrança de impostos recai exclusivamente sobre o trabalho assalariado, ao passo que as grandes riquezas e os dividendos são poupadas de quaisquer tipos de taxação. Em outras palavras, os ricos brasileiros não pagam impostos sequer sobre seus brinquedos de luxo como iates, aviões, helicópteros, entre outros. A simples ameaça de políticas que possam prenunciar esse tipo de cobrança pode gerar reações desproporcionais. Para entender a atuação enérgica dos ricos brasileiros no campo político, basta conferir a coincidência entre a queda da taxa de seus lucros com a inúmeras tentativas efetivas ou não de golpes ocorridos no país. A última evidência pode ser constatada no golpe parlamentar imposto sobre o governo de Dilma Rousseff em 2016. O impeachment da presidente ocorreu após quase 14 anos de gestão do Partido dos Trabalhadores, ainda que balizada por coalizões com partidos de direita, quando se registra, mais precisamente entre 2010 e 2015 queda na taxa de lucros das maiores empresas não financeiras brasileira[5]. Nesse período só se excetuam os bancos, que, não obstante as oscilações, nunca deixaram de auferir seus elevados lucros. É no contexto de redução dos lucros, que as elites tupiniquins, geralmente, põem a boca no trombone e começam a alardear a necessidade de reduzir os custos do trabalho, de controlar as finanças públicas, de reduzir o tamanho do Estado, de garantir medidas protecionistas e outras medidas de privilégios que têm caracterizado o neoliberalismo na terra brasilis.
O governo bolsonarista foi e tem sido, por enquanto, o paraíso dessas elites, que defendem oficialmente a abertura das porteiras e a passagem livre da boiada. É assim que pensa o capital que ainda guarda os resquícios de um Brasil colonizado ou de um Brasil em que o rei garantia os interesses dos coronéis de províncias, ainda que isso representasse a destruição do próprio país. Os estrados medianos, de onde talvez pudessem surgir a voz rouca dos injustiçados, parece ter sido em sua grande maioria cooptada e se enfiado em camisetas da seleção brasileira ou se embrulhado de forma piegas na bandeira brasileira na representação de um patriotismo que nunca existiu. Esses mesmos estratos outrora, e ainda hoje, embriagados pelos odores das casernas aplaudiram a passeata da proclamação da república e atualmente se aglomeram em frentes aos quartéis implorando por um golpe de estado. Fizeram algo parecido em 1964 e buscam repetir a dose nos dias de hoje, mas, sem a sustentação internacional de ontem, talvez não consigam ir além da promoção de feirinhas para a venda de bandeiras, bonés e hambúrgueres para patriotas (sabe-se lá o que pode ser isso!)[6]. O que fica evidente em tudo isso, é mais uma vez os setores medianos, agora engrossados pela participação dos adeptos do neopentecostalismo, cooptados e financiados por segmentos das elites brasileiras para promover as badernas e o caos em expressões antidemocráticas pelo país afora[7]. Como não podiam estar ausentes, entre esses financiadores da desordem, encontram-se os representantes do agronegócio também definido de forma jocosa como ogronegócio. Esse segmento representa o pior que existe do capital depredatório invasor de terras, poluidor e avesso a cumprir qualquer papel social relevante. No final das contas, essa gente pode pagar advogados caros, corromper políticos e servidores públicos e se livrar de multas e da cadeia, mas o mesmo não se pode afirmar em relação às bestas manipuladas que vão para as ruas em estado de convulsão e catarse, a exemplo do estúpido patriota que colocou a própria vida em risco dependurando-se em um caminhão em movimento[8].
O Brasil vive um momento estranho de beligerância, loucura e falta de um motivo cívico que conceda à sociedade o sentimento de pertencimento a um país acolhedor. O futebol e o carnaval já não são suficientes para conceder o brilho nos olhos e a crença em um país solidário e próspero. A falta de solidariedade e a brutalidade real dos brasileiros apareceu para todos, com todo o seu colorido e com toda a sua ignorância. O brasileiro da era bolsonarista é aquele que, talvez pela primeira vez em sua história, está expulsando das entranhas o que realmente sempre foi: pouco solidário, racista, misógino e intolerante. Todas essas marcas não surgiram hoje, mas são as heranças malditas de uma sociedade escravocrata, que nunca abandonou de fato a mentalidade e o padrão relacional nascido no país da casa grande, das senzalas e de um processo de modernização sempre desigual e excludente. Há aquela parcela que deseja, de forma ainda muito contraditória, reaver um processo civilizatório. É essa parcela que apostou e está apostando no voto concedido aos partidos da frente ampla nas eleições de 2022. Entretanto, o desafio desse novo governo serão imensos, porque envolve não só a reconstrução das instituições que foram destruídas, principalmente a educação que representa muito nos processos de mudanças, particularmente das mentalidades e dos comportamentos, mas, sobretudo, estabelecer as condições para a manutenção do estado de direito e da frágil democracia tupiniquim, que permanecem sob a ameaça do obscurantismo bolsonarista, particularmente porque ele pode ser retroalimentado constantemente ou incentivado com força a qualquer momento de acordo com o humor e interesses das elites econômicas. O Brasil sofre, em verdade, com os males de nunca ter enfrentado, de verdade, um processo revolucionário civilizatório. Ao contrário da sociedade norte-americana, cuja burguesia do norte destruiu as ambições das oligarquias sulistas, por intermédio de uma guerra de secessão realizada ainda no século XIX, no Brasil a burguesia de hoje é herdeira das oligarquias que começaram a ser geradas ainda no sistema de capitanias hereditárias no século XVI.
Pode-se dizer que a parcela mais lúcida da sociedade brasileira, que não é de forma alguma homogênea em seus interesses, conseguiu derrotar a máquina miliciana da burguesia brasileira apenas pelo voto em 2022, mas isso certamente é um excesso de otimismo e uma leitura muito romântica e religiosa: o pequeno pastor que vence o gigante apenas com uma simplória funda. O que merece ser vencido é o país do atraso, cujas raízes ainda permanecem cravadas no passado, e isso deve ser feito dentro de uma nova perspectiva, que consiga considerar o mundo como ele é exatamente agora, ou seja, no século XXI. Muitos novos desafios estão postos na mesa, inclusive a questão ambiental e climática, bem como o desenvolvimento de tecnologias sustentáveis. O Brasil do atraso precisa não só superar o seu anacronismo, cortando as raízes fincadas na colônia, no império destorcido, na velha república caolha e se reconstruir como um novo país, capaz de superar o mofo de suas elites, o conservadorismo de seus estratos medianos e, destacadamente, a pobreza da maior parte de sua população. Esse é um projeto que começa, caso seja bem-sucedida, com ações contundentes da frente ampla, mas não termina com sua gestão. O país precisa, em todos os setores sociais, ser convencido de que caminha para o abismo, caso não opte por corrigir seus vícios e estabelecer um processo de desenvolvimento sustentável e includente. Hoje não temos um só Brasil, temos vários países dentro de um só, com perspectivas muito diversas e com desigualdades gritantes. É necessário unificar o país, ainda que respeitando as suas diversidades, e instaurar um processo civilizatório capaz de superar a bizarrice do patriotismo burlesco dos crentes insensatos, dos neofascistas e neonazistas sem causa, cuja cega sordidez só serve a um único propósito: manter as condições necessárias para a reprodução do capital e das elites econômicas tupiniquins, que de tão estúpidas e gananciosas não conseguem sequer enxergar que o próprio atraso pode condená-las à extinção.
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[1]https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2022/11/se-ele-fez-com-judeus-eu-faco-com-petistas-discriminacao-e-ameacas-invadem-escolas-e-universidades-no-cenario-pos- eleicao.ghtml?utm_source=Twitter&utm_medium=Social&utm_campaign=OGlobo
[2] Obras publicadas pela Editora Unesp.
[3] Warren Dean observa a relevância dos grupos familiares, por exemplo, no processo de industrialização em São Paulo entre 1880 e 1945 em seu livro A Industrialização de São Paulo (Editora Difel em edição de 1975).
[4] As mulheres brasileiras só adquirem o direito de voto a partir de 1932, ou seja, próximo da metade do século XX
[5] Estudos sobre esse fenômeno têm sido realizados pelo professor Eduardo Costa Pinto da UFRJ. Conferir: https://outraspalavras.net/outrasmidias/brasil-o-apetite-sem-fim-da-megaburguesia/